No Brasil, talvez por um certo ufanismo e busca por "heróis", a mídia não especializada tende a atribuir a invenção do relógio de pulso a Santos Dumont. Como é cediço, porém, desde o final do século XIX já existiam relógios de pulso - pouco difundidos, que fique claro - sendo usados por forças armadas e produzidos "em série". A Girard Perregaux, por exemplo, fabricou algumas dezenas para oficiais da Marinha Prussiana nos anos de 1890...
Quanto ao pioneirismo da construção do primeiro relógio de pulso usado, a Breguet, de forma documentada, a atribui para si. Há uma discussão pouco comentada na mídia, que diz respeito à incapacidade técnica, ou não, de se construir um relógio de pulso na época. O que quero dizer é o seguinte: o primeiro relógio de pulso não surgiu antes porque não havia condições técnicas para tal? E a resposta a isso só pode ser um sonoro não. Mudge, por exemplo, no final do século XVIII, já havia produzido mecanismos tão pequenos que podiam ser adaptados a anéis. Ou seja, nessa época já havia relógios "de anel", e nada impedia (ou impediu) que fossem adaptados ao pulso. A "invenção" do relógio de pulso, assim, tem muito mais a ver com "moda" do que que "técnica" e, apesar de toda firula criada em torno disso, acredito ser uma discussão boba, incrementada pelos fabricantes para criar nos consumidores um sentimento de prioridade inventiva que não mostra muita coisa... Mas é interessante.
Voltemos à Breguet, que atribui a si, de forma documentada, a primazia do invento.
O documento abaixo demonstra que, em 1810, Caroline Murat, irmã de Napoleão e, na época, Rainha de Nápoles (eis que seu marido, Joachim Murat, estava em campanha militar com Napoleão), encomendou a Breguet dois relógios: um relógio de algibeira com complicação, pela quantia de 100 Louis, e um relógio de repetição com bracelete, por 5000 francos (primeira linha do documento). Creiam, 5000 francos era uma grana INACREDITÁVEL na época, equivalente, hoje, aos mais caros Breguets que a marca de hoje faz. Coisa de rainha mesmo...
O relógio começou a ser fabricado dois meses depois da encomenda, em 11 de agosto de 1810, e foi completado em 21 de dezembro de 1812. Lembrem-se que, na época, tudo era feito artesanalmente e não havia computadores e máquinas CNC, o que explica o prazo relativamente longo de entrega. Pelo registro, é possível saber que era um relógio com bracelete, em formato oval, incorporando um termômetro e repetição de quartos. O escapamento, não usual na época, era de âncora. Ao contrário do imaginário popular, sobretudo atualmente, que se ressalta a "primazia" do "in house", ou feito em casa, isso não aconteceu na totalidade na sua fabricação. Aliás, também ao contrário do imaginário popular, é possível que Breguet sequer tenha colocado a mão na massa na sua fabricação. Breguet, é certo, tinha um workshop no qual trabalhavam vários relojoeiros e, se não conseguisse resolver tudo em casa, subcontratava. A tônica da indústria relojoeira, como procuro ressaltar aqui, nunca foi a produção artesanal por um relojoeiro... Caso contrário, seria impossível produzir mais do que poucos relógios por ano... Basta lembrar que Daniels, seguindo essa linha, só fez uns 35 em toda sua vida! Na fabricação do relógio de pulso para a Rainha de Nápoles, pois, participaram nada mais nada menos do que 17 profissionais, em 34 atividades de fabricação diferentes, todas documentadas e pagas separadamente pelo atellier Breguet.
O relógio, finalmente, acabou custando menos do que a encomenda, 4800 francos, e a entrega foi postergada porque Caroline pediu a troca do mostrador, de ouro com guilloche, para prata com guilloche.
Nos arquivos da Breguet, segundo texto que tomei como base para escrever esse post, de autoria de Emmanuel Breguet, há uma nova entrada do relógio nos atelliers da marca em 1849. Na época, o relógio foi enviado para revisão por Louise Murat, filha de Caroline. Durante a revisão, foram polidos os pivôs, restaurado o mecanismo de repetição, feito limpeza e ajuste. Custou 80 francos...
Em 1855 uma nova entrada na Breguet para revisão é registrada e nunca mais... O relógio simplesmente nunca mais foi visto, seja em leilões ou coleções particulares, e não se sabe se ainda existe.
Com base na informações de descrição técnica contidas nos registros, a Breguet lançou, há alguns anos, a linha "Rainha de Nápoles", que busca replicar o que seria o visual do relógio.
Em suma, a Breguet é sim reconhecida como a primeira manufatura a fabricar por encomenda um relógio de pulso, tudo está bem documentado. Porém, na época não havia empecilho técnico para outros o fazerem. Na minha singela opinião, pois, a Breguet não fez algo "revolucionário" ao fabricar ao relógio... Se fôssemos levar a ferro e fogo o conceito de primazia da invenção, talvez devêssemos atribui-la a Caroline Murat... Sim, porque Breguet apenas fez o que Caroline encomendou.
Flávio