Menu principal

A industrialização das artes e ofícios

Iniciado por admin, 27 Dezembro 2017 às 14:25:40

tópico anterior - próximo tópico

flávio

Fazia tempo que não lia um artigo tão lúcido e sucinto, mas com bom conteúdo. Aqueles que não leem em inglês, usem o tradutor, vale a pena.

A história é a seguinte. Uma "marquinha", que supostamente faz tudo em casa e artesanalmente, publicou em mídia busca por uma vaga, a de "gerente de industrialização de artes e ofícios". A marca, que produz grande parte ou a totalidade de seu merchandising dizendo que seus relógios são exclusivos e artesanais, é ninguém menos do que a Patek. Mas como assim, "industrializar" a arte?

Inicialmente, devo asseverar ao incauto que a "industrialização" da arte é a tônica em toda indústria e na relojoaria, que se expande na história por mais de 700 anos, idem. A relojoaria, de fato, surgiu no século XIV, quando ferreiros passaram a construir toscos relógios de campanários para igrejas e burgos. Na época, o trabalho era praticamente individual, artesanal e demorado. Aliás, era tão caro e complexo que, normalmente, quando um "relojoeiro" construía um relógio para um burgo, tornava-se contratado pelo resto da vida para cuidar dele.

Da produção do relógio grandalhão de campanário, para de pedestal, e, finalmente, para o portátil, foi um pulo. Eh... Um pulo de alguns séculos.

E a busca sempre foi por transformar aqueles produtos outrora artesanais e fabricados por um só homem em algo industrializado e com melhor qualidade. Como ressaltado no texto, a Rolex, por exemplo, fabrica relógios hoje, basicamente industrializados e produzidos em massa, que nem nos mais profundos sonhos John Harrison pensaria em fazer (e sua produção de relógios não ultrapassou a dezena em TODA uma vida...).

A evolução da relojoaria, pois, é a evolução, inicialmente, da divisão do "artesanato" entre especialistas (algo que, por exemplo, ocorria no atelier de Breguet), para um sistema descentralizado entre artesãos (o sistema de etablisage suíço), até a verticalização (não total, diga-se) da produção em fábricas, algo iniciado pela Walthan americana e copiada, depois por Longines, Zenith e Omega.

A evolução da relojoaria é a evolução das máquinas que produzem os relógios e substituem o homem na função e, claro, de forma melhor. Afinal, humanos cometem erros, as máquinas raramente...

Não seria de se espantar, pois, a indústria hoje estar evoluindo e, portanto, nas grandes marcas, como Rolex e Omega, os homens estarem sendo substituídos por máquinas.

Aí eu entro na minha BIRRA com o atual mercado e meu motivo de total decepção e falta de tesão com o tema (meu "viagra" continua sendo os livros sobre história da relojoaria, porque o bem em si... Já não me desperta mais muito interesse, pelo menos não interesse em tê-lo). Uma coisa é você vender o produto como algo de qualidade e, de forma transparente, indicar como este é feito. Outra coisa é você gastar 20 por cento dos seus recursos na produção do produto e 80 por cento em marketing (mentiroso, diga-se de passagem) para dizer que este é "artesanal", fabricado na fantástica fábrica de chocolates por Umpa Lumpas, tudo para justificar seu preço de suposta "exclusividade".

Já li alhures, inclusive em comentários de foristas aqui, que esse lance de "artesanal" não é tão fundamental na venda de um relógio e que o mercado não sobrevive disso. É mesmo? Então porque TODOS os fabricantes utilizam este conceito? O artesanal pressupõe, sobretudo nos dias atuais, exclusividade. Aliás, o "artesanal" é o que indica que um quadro como o "O Grito" possa custar centenas de milhões de dólares e suas reproduções (aliás, havia uma na academia que frequentava...) não valham nada. São o que são: reproduções.

Nesse sentido, tomemos como exemplo a onipresente Rolex, que sempre será citada porque paradigma de sucesso e, claro, de penetração no mercado de "luxo". A Rolex se saiu bem nessa seara porque conseguiu, nas décadas que se passaram, manter uma equação tênue entre procura e demanda do seu mercado pretendido, tornando seu produto acessível, mas nem tanto... São 800 mil relógios por ano e ninguém em certa sanidade diz que isso é exclusividade. Mas os produtos não são baratos... Mas também não tão caros. E a Rolex, não tem NADA de artesanal na sua produção, quando muito o toque humano de relojoeiros em tarefas básicas, que poderiam ser ensinadas a chipanzés. A Rolex vende qualidade, e o faz justamente porque não produz de forma limitada ou artesanal. É um paradoxo... Sim e não... Ninguém compra um carro da BMW porque ele teoricamente é artesanal. O compra por ser um bom produto. Mas certamente o consumidor de Rolls Royces leva isso em consideração...

Esse o problema. Quem compra Rolex talvez não o faça por ser artesanal, algo que o marketing da marca, aliás, abandonou há tempos (lembram-se do anúncio antigo da Rolex dizendo que era necessário um ano para fabricar um? Hoje isso foi substituído pelo "Rolex Way" que, inclusive, mostra robôs fazendo o relógio). O problema não está na Rolex, pelo menos não no seu marketing. O problema está na maioria das marcas, que vendem o produto (antigo em seu âmago, diga-se) como se fosse o reflexo de "dias que se foram", exclusivo pelo artesanato, quando na verdade não é nada disso. Mas mesmo a Rolex, com seus robôs no "the rolex way", busca ressaltar uma aura de exclusividade na produção que, convenhamos, não é privilégio dela (a indústria de carros atual é exemplo do "rolex way").

Esse estado de coisas... Essa conversa fiada das fábricas no sentido de transformarem seus produtos em "chocolates mágicos" produzidos por "Umpa Lumpas" me dá nos nervos. Essa falta de transparência... E em toda cadeia de produção o estado de coisas se repete, desde ao marketing de venda ao pós venda. Afinal, peças que antigamente eu conseguia de graça diretamente com as fábricas, porque certamente custavam centavos de francos suíços, hoje custam fortunas nas assistências técnicas (afinal, o suíço tem que vender aquilo como "mágico", não é mesmo?). A própria assistência técnica, com seus preços absolutamente surreais (outro dia um conhecido mandou revisar um Daytona e a conta, sem troca de peças a mais, bateu em quase 5 mil reais!), busca manter essa "aura" de exclusividade que simplesmente não existe no mercado atual.

O articulista, uma vez que eu desviei um pouco o tópico, conclui dizendo que o futuro da relojoaria talvez esteja nos independentes que, soltos das amarras do mercado, atuam como os grandes estilistas: fazem coisas loucas para poucas pessoas, de forma artesanal e cobrando caro por isso, mas que depois influenciarão o "pret a porter". Uma mulher que vai ao desfile da Chanel quer descobrir o que o Karl Lagerfeld tem a mostrar e, certamente influenciada por isso, poderá comprar uma bolsa da marca mais simples e com preço mais barato no futuro. Mas certamente não o fará por achar que foi o próprio Karl Lagerfeld quem a fabricou...

O texto


http://quillandpad.com/2017/12/20/industrialization-arts-crafts-unspoken-tagline-many-haute-horlogerie-brands-today/



Flávio

TUZ40

"All your base are belong to us"

paulorocha

Meu caro Flávio, antes de tudo quero deixar claro que gostei muito, tanto da tua abordagem quanto do artigo em si. Mas tenho algumas considerações...

Até que ponto uma marca assumidamente industrial, e até certo ponto honesta do ponto de vista publicitário como a Rolex, REALMENTE está conseguindo manter suas vendas devido à qualidade e não a pura e simples propaganda?

Explico:

Usando os dois exemplos citados no artigo - carros (Mercedes Benz) e computadores (Apple) - temos produtos que deixaram a muito de serem "artesanais" e vendem (e entregam...) uma qualidade muito superior aos concorrentes, daí conseguirem manter o status de luxo.

Mas e a Rolex? E qualquer outra marca de relógios, não importa qual sua propaganda? Qual é a "qualidade muito superior" que podem entregar nos dias atuais? No que consistiria esta "qualidade superior"? Precisão? Qualquer quartz de 50 reais é muito mais preciso que qualquer mecânico... Durabilidade? Respondo com apenas um nome - G-Shock...

Prefiro quartz? Claro que não! Sou apaixonado pelos mecânicos, e diferente de você, meu amigo, ainda os desejo bastante. Embora não esteja mais disposto a pagar pequenas fortunas nas marcas mais top...

Concordo que a Patek, ou qualquer outra marca, querer manter a aura de produto "artesanal" é, no mínimo, risível. Mas querer classificar qualquer produto da atual relojoaria de luxo com qualquer outro adjetivo que não o de "joia" (no sentido de joalheria mesmo - produto para usar como adorno) também é ingenuidade.

Paulo, que não compraria um Daytona mas talvez sim um Explorer, Rocha...
Um grande abraço

Paulo Rocha

KBM

Bacana o artigo. O que mais parece incomodar o autor, no entanto, é algo que considero não apenas natural, mas, de certa forma, até mesmo positivo: o avanço da industrialização nos processos de fabricação dos relógios das marcas mais luxuosas.

Honestamente, com poucas exceções - normalmente relacionadas a processos somente presentes em peças ultra exclusivas, mesmo para o padrão da alta relojoaria, como grand feu, balanços todos talhados, calibres a la Lange, etc, o avanço da robotização acarreta incremento de qualidade na execução dos mesmos processos e entrega dos mesmo componentes, agora aprimorados. Qual seria o problema, então? Para o autor, a diminuição do espaço ocupado pelos verdadeiros artesãos e, por que não dizer, artistas, na produção. No entanto, a realidade da indústria já é a de que esses profissionais extremamente qualificados só participam de maneira significativa na produção de uma parcela ínfima dos relógios produzidos, inclusive pelas grandes marcas.

O maior desejo que o consumidor de luxo tem é o de acessar algo que seja de altíssima qualidade e, simultaneamente, exclusivo. O primeiro elemento, na esmagadora maioria dos processos de produção, as máquinas entregam melhor do que humanos. O segundo se cria com produção limitada e preço, estando ou não presente o elemento artesanal. É ingenuidade pensar que hoje há uma parcela significativa de etapas desempenhadas por artistas/artesãos na produção dos relógios de alto luxo mais mainstream (aqui me refiro a PP/VC/AP, não a Rolex, Omega, etc). Esse tipo de trabalho ainda existe nessas marcas, mas está restrito a modelos "de nicho" mesmo no contexto já restrito de quem compra alta relojoaria. 

Em resumo, o artigo levanta um ponto interessante, mas, na minha opinião, parte da premissa equivocada de que a industrialização é intrinsicamente negativa na alta relojoaria, se substituir processos artísticos/artesanais.

Quanto ao seu desânimo, Flavio, se isso se deve a uma falta de transparência da indústria quanto ao produto e aos investimentos em marketing, RP, etc., desencana. Em todos os ramos de negócio há uma tendência à hipérbole na publicidade e uma tentativa de diferenciação do produto anunciado como único (artesanal, raro, gourmet, etc.). Se o produto for de altíssima qualidade - e isso é objetivamente verificável, apesar da opinião do Paulo, acima - é o que basta.

paulorocha

Citação de: Kauebm online 28 Dezembro 2017 às 11:55:44Se o produto for de altíssima qualidade - e isso é objetivamente verificável, apesar da opinião do Paulo, acima - é o que basta.
Hehe, só deixando claro que em nenhum momento eu afirmei que alta qualidade não pode ser observada.

Apenas citei o fato de que existem relógios que entregam precisão e durabilidade (a meu ver as características principais no quesito "qualidade") a preço inferior aos praticados pelas grandes marcas.

Em outras palavras, quando pagamos o preço da Haute Horlogerie, estamos pagando pelo nome, pela exclusividade, ou tão somente por gostar de um relógio mecânico.
Um grande abraço

Paulo Rocha

KBM

Citação de: paulorocha online 29 Dezembro 2017 às 09:58:36
Hehe, só deixando claro que em nenhum momento eu afirmei que alta qualidade não pode ser observada.

Apenas citei o fato de que existem relógios que entregam precisão e durabilidade (a meu ver as características principais no quesito "qualidade") a preço inferior aos praticados pelas grandes marcas.

Em outras palavras, quando pagamos o preço da Haute Horlogerie, estamos pagando pelo nome, pela exclusividade, ou tão somente por gostar de um relógio mecânico.

Olá Paulo, realmente entendemos qualidade de uma forma diferente, nesse caso. Precisão e durabilidade são elementos dela, sem dúvida, mas o que denota qualidade quando se segura um relógio nas mãos? Penso que o nível de acabamento, polimento, trabalho de mostrador, materiais utilizados, detalhes dos ponteiros, índices, etc. são componentes indissociáveis da percepção de qualidade. E todos esses são objetiva e instantaneamente verificáveis quando se manuseia um relógio.

Ao comprar grandes marcas, indiscutivelmente pagamos pelo nome e exclusividade, mas todos os elementos que citei estão também contemplados.

paulorocha

Sim, sim, concordo plenamente contigo!

Traçando um paralelo com a minha arte particular, a cutelaria artesanal, realmente temos uma diferenciação entre peças feitas com material simples ou sofisticado - aço carbono ou aço damasco por exemplo - e entre diversos níveis de acabamento - confesso que minhas peças não são nenhum exemplo de "bom acabamento", apesar de me orgulhar de fazer uma geometria de fio bem acima da média...

Grande abraço!
Um grande abraço

Paulo Rocha

flávio

O problema na equação é que hoje se alcança alta qualidade justamente pelos tais métodos industrializados. Mas a rolex não vai dizer que seus métodos de produção de alta qualidade, comuns a todos, representam, citando o meme acima postado pelo Arthur, 20 por cento do preço do relógio... Ela vai gastar 80 por cento para tentar nos convencer que aquilo ali é o ó do borogodó, para justificar o injustificável preço cobrado. E depois, quando o troço der defeito, te convencerá que somente mágicos podem conserta lo, cobrando preço de apresentação do Houdini. Esse o problema...

Flávio

Enviado de meu Lenovo A6020l36 usando Tapatalk


KBM



Citação de: flavio online 29 Dezembro 2017 às 18:37:25
O problema na equação é que hoje se alcança alta qualidade justamente pelos tais métodos industrializados. Mas a rolex não vai dizer que seus métodos de produção de alta qualidade, comuns a todos, representam, citando o meme acima postado pelo Arthur, 20 por cento do preço do relógio... Ela vai gastar 80 por cento para tentar nos convencer que aquilo ali é o ó do borogodó, para justificar o injustificável preço cobrado. E depois, quando o troço der defeito, te convencerá que somente mágicos podem conserta lo, cobrando preço de apresentação do Houdini. Esse o problema...

Flávio

Enviado de meu Lenovo A6020l36 usando Tapatalk

Esse é o ponto: não vejo problema algum em se alcançar alta qualidade pelos métodos industrializados. Se o resultado final for excepcional, possivelmente superior àquele atingido por seres humanos desempenhando a mesma tarefa, tanto melhor.

E notem que, apesar de a industrialização ser prática generalizada na relojoaria, o nível de qualidade das peças, conforme os critérios que citei acima, varia drasticamente de marca para marca. Assim, parece-me que hoje se gasta uma montanha de dinheiro mais para exaltar a qualidade (real ou não) e "exclusividade" dos relógios do que para criar a percepção de algo artesanalmente produzido.

O problema na equação, então, não está na industrialização dos processos de produção, mas talvez na proporção de alocação de receita a fins menos nobres do que aquilo que mais importa: a qualidade dessas maquininhas obsoletas de que tanto gostamos.

Pandolfi

Olá amigos...

Parabéns pelas maravilhosas explanações...

Grande abraço

Pandolfi