Fazia tempo que não lia um artigo tão lúcido e sucinto, mas com bom conteúdo. Aqueles que não leem em inglês, usem o tradutor, vale a pena.
A história é a seguinte. Uma "marquinha", que supostamente faz tudo em casa e artesanalmente, publicou em mídia busca por uma vaga, a de "gerente de industrialização de artes e ofícios". A marca, que produz grande parte ou a totalidade de seu merchandising dizendo que seus relógios são exclusivos e artesanais, é ninguém menos do que a Patek. Mas como assim, "industrializar" a arte?
Inicialmente, devo asseverar ao incauto que a "industrialização" da arte é a tônica em toda indústria e na relojoaria, que se expande na história por mais de 700 anos, idem. A relojoaria, de fato, surgiu no século XIV, quando ferreiros passaram a construir toscos relógios de campanários para igrejas e burgos. Na época, o trabalho era praticamente individual, artesanal e demorado. Aliás, era tão caro e complexo que, normalmente, quando um "relojoeiro" construía um relógio para um burgo, tornava-se contratado pelo resto da vida para cuidar dele.
Da produção do relógio grandalhão de campanário, para de pedestal, e, finalmente, para o portátil, foi um pulo. Eh... Um pulo de alguns séculos.
E a busca sempre foi por transformar aqueles produtos outrora artesanais e fabricados por um só homem em algo industrializado e com melhor qualidade. Como ressaltado no texto, a Rolex, por exemplo, fabrica relógios hoje, basicamente industrializados e produzidos em massa, que nem nos mais profundos sonhos John Harrison pensaria em fazer (e sua produção de relógios não ultrapassou a dezena em TODA uma vida...).
A evolução da relojoaria, pois, é a evolução, inicialmente, da divisão do "artesanato" entre especialistas (algo que, por exemplo, ocorria no atelier de Breguet), para um sistema descentralizado entre artesãos (o sistema de etablisage suíço), até a verticalização (não total, diga-se) da produção em fábricas, algo iniciado pela Walthan americana e copiada, depois por Longines, Zenith e Omega.
A evolução da relojoaria é a evolução das máquinas que produzem os relógios e substituem o homem na função e, claro, de forma melhor. Afinal, humanos cometem erros, as máquinas raramente...
Não seria de se espantar, pois, a indústria hoje estar evoluindo e, portanto, nas grandes marcas, como Rolex e Omega, os homens estarem sendo substituídos por máquinas.
Aí eu entro na minha BIRRA com o atual mercado e meu motivo de total decepção e falta de tesão com o tema (meu "viagra" continua sendo os livros sobre história da relojoaria, porque o bem em si... Já não me desperta mais muito interesse, pelo menos não interesse em tê-lo). Uma coisa é você vender o produto como algo de qualidade e, de forma transparente, indicar como este é feito. Outra coisa é você gastar 20 por cento dos seus recursos na produção do produto e 80 por cento em marketing (mentiroso, diga-se de passagem) para dizer que este é "artesanal", fabricado na fantástica fábrica de chocolates por Umpa Lumpas, tudo para justificar seu preço de suposta "exclusividade".
Já li alhures, inclusive em comentários de foristas aqui, que esse lance de "artesanal" não é tão fundamental na venda de um relógio e que o mercado não sobrevive disso. É mesmo? Então porque TODOS os fabricantes utilizam este conceito? O artesanal pressupõe, sobretudo nos dias atuais, exclusividade. Aliás, o "artesanal" é o que indica que um quadro como o "O Grito" possa custar centenas de milhões de dólares e suas reproduções (aliás, havia uma na academia que frequentava...) não valham nada. São o que são: reproduções.
Nesse sentido, tomemos como exemplo a onipresente Rolex, que sempre será citada porque paradigma de sucesso e, claro, de penetração no mercado de "luxo". A Rolex se saiu bem nessa seara porque conseguiu, nas décadas que se passaram, manter uma equação tênue entre procura e demanda do seu mercado pretendido, tornando seu produto acessível, mas nem tanto... São 800 mil relógios por ano e ninguém em certa sanidade diz que isso é exclusividade. Mas os produtos não são baratos... Mas também não tão caros. E a Rolex, não tem NADA de artesanal na sua produção, quando muito o toque humano de relojoeiros em tarefas básicas, que poderiam ser ensinadas a chipanzés. A Rolex vende qualidade, e o faz justamente porque não produz de forma limitada ou artesanal. É um paradoxo... Sim e não... Ninguém compra um carro da BMW porque ele teoricamente é artesanal. O compra por ser um bom produto. Mas certamente o consumidor de Rolls Royces leva isso em consideração...
Esse o problema. Quem compra Rolex talvez não o faça por ser artesanal, algo que o marketing da marca, aliás, abandonou há tempos (lembram-se do anúncio antigo da Rolex dizendo que era necessário um ano para fabricar um? Hoje isso foi substituído pelo "Rolex Way" que, inclusive, mostra robôs fazendo o relógio). O problema não está na Rolex, pelo menos não no seu marketing. O problema está na maioria das marcas, que vendem o produto (antigo em seu âmago, diga-se) como se fosse o reflexo de "dias que se foram", exclusivo pelo artesanato, quando na verdade não é nada disso. Mas mesmo a Rolex, com seus robôs no "the rolex way", busca ressaltar uma aura de exclusividade na produção que, convenhamos, não é privilégio dela (a indústria de carros atual é exemplo do "rolex way").
Esse estado de coisas... Essa conversa fiada das fábricas no sentido de transformarem seus produtos em "chocolates mágicos" produzidos por "Umpa Lumpas" me dá nos nervos. Essa falta de transparência... E em toda cadeia de produção o estado de coisas se repete, desde ao marketing de venda ao pós venda. Afinal, peças que antigamente eu conseguia de graça diretamente com as fábricas, porque certamente custavam centavos de francos suíços, hoje custam fortunas nas assistências técnicas (afinal, o suíço tem que vender aquilo como "mágico", não é mesmo?). A própria assistência técnica, com seus preços absolutamente surreais (outro dia um conhecido mandou revisar um Daytona e a conta, sem troca de peças a mais, bateu em quase 5 mil reais!), busca manter essa "aura" de exclusividade que simplesmente não existe no mercado atual.
O articulista, uma vez que eu desviei um pouco o tópico, conclui dizendo que o futuro da relojoaria talvez esteja nos independentes que, soltos das amarras do mercado, atuam como os grandes estilistas: fazem coisas loucas para poucas pessoas, de forma artesanal e cobrando caro por isso, mas que depois influenciarão o "pret a porter". Uma mulher que vai ao desfile da Chanel quer descobrir o que o Karl Lagerfeld tem a mostrar e, certamente influenciada por isso, poderá comprar uma bolsa da marca mais simples e com preço mais barato no futuro. Mas certamente não o fará por achar que foi o próprio Karl Lagerfeld quem a fabricou...
O texto
http://quillandpad.com/2017/12/20/industrialization-arts-crafts-unspoken-tagline-many-haute-horlogerie-brands-today/Flávio