Há alguns anos, fui em um almoço na residência de um amigo quando notei, perdido em uma mesa, um cronômetro de marinha usado como objeto de decoração. Como o pai do amigo me contou, o cronômetro tinha pertencido ao seu pai, que era navegador da Marinha Mercante. Ao que parece, cada navegador possuía e confiava apenas nos seu próprio cronômetro, que levava a bordo como instrumento próprio de trabalho.
E tanto meu amigo como seu pai nunca tinham visto o troço funcionando, e sequer sabiam se estava em bom estado. Na época, já faz alguns anos (inclusive postei fotos aqui), perguntei-lhe: "posso olhar?". E o que vi foi um cronômetro em excelente estado de conservação, contendo, inclusive, o boletim de certificação e ajuste. Ao movimentar o giroscópio no qual se apoia, notei a lingueta de proteção da tirete de corda (algo que sequer sabiam que existia...), meti corda e... Voilá, depois de uns 60 anos parado, simplesmente voltou a funcionar, como se houvesse saído da loja. Na época, fiquei até emocionado.
Ontem, em uma visita a casa do meu amigo, percebi que seu pai havia lhe doado o cronômetro, que agora faz parte da decoração "modernosa" do seu apartamento (um contraste... Aliás, aqui em casa minha decoração também tem esses contrastes...).
Fato é que dei mais uma olhada no relógio e resolvi postar essas fotos.
O cronômetro, como já disse aqui quando o vi pela primeira vez, é de altíssimo nível, fabricado pela Hugues and Son de Londres. A empresa foi fundada em 1828 e construiu cronômetros para as marinhas do mundo, sobretudo a Britânica, desde então. Mas não só... Existe até hoje, infelizmente não mais como empresa totalmente britânica (foi comprada por um grupo alemão), e atua no ramo de... Adivinhem? Navegação, fabricando sistema de radar e telemetria para navios, sobretudo fragatas (a evolução de empresa pode ser vista aqui, clicando no lado direito "related people"
https://collection.sciencemuseumgroup.org.uk/people/cp58792/henry-hughes-and-son-limitedNão é demais lembrar a importância que esses objetos tiveram na evolução da cronometria. Para não repetir, lanço aqui o texto sobre o assunto que escrevi - como o tempo passou! - em 2005.
http://relogiosmecanicos.com.br/curiosidades/uma-visita-ao-observatorio-de-greenwich/Algumas questões técnicas a serem ressaltadas neste cronômetro de marinha. O formato é "padrão", com o relógio protegido por uma caixa em madeira e apoiado em giroscópio, para manter-se na mesma posição, independente do movimento de balanço do navio. Numerais grandes, segundeiro bastante visível, frequência de 14400 bph, etc. O escapamento, claro, é o "detent", cuja explicação detalhada pode ser apreendida também através de um texto que escrevi há um bom tempo, aqui:
http://relogiosmecanicos.com.br/curiosidades/o-escapamento-de-cronometro/É ressaltado, ainda, conforme se pode ver no mostrador, o uso de "compensação auxiliar". O que é isso? Os balanços destes cronômetros (e também dos relógios de pulso até meados dos anos 50...) eram feitos em dois materiais diferentes, em regra latão e aço. É suficiente dizer que, possuindo tais metais diferentes coeficientes de dilatação, à medida que a temperatura local variava, a frequência da oscilação do mecanismo, devido a esse tipo de construção, tendia a compensar a influência da temperatura sobre o relógio. E alguns cronômetros de marinha superiores não só possuíam esse sistema de compensação da influência da temperatura, como um adicional, para torná-lo mais preciso ainda. É o caso.
Outra coisa que dá para perceber pelas fotos é a utilização de contatos elétricos metálicos (vejam os fios). O que acontecia era o seguinte. O cronômetro de marinha era levado a bordo e aparafusado a contatos elétricos. A cada minuto, o circuito se fechava e a hora do relógio "mestre", no caso o cronômetro, era transmitida a todos os outros relógios do navio. Em suma, em um navio existia dezenas de relógios (eletromecânicos), que a cada minuto eram "ajustados" por um pulso elétrico proveniente do cronômetro de marinha, totalmente mecânico, apenas com um circuito adaptado que se "fechava" minuto a minuto, através de um contato localizado em uma roda O mecanismo de contato elétrico é mais ou menos isso aqui:
http://www.antiques-marine.com/chronometers/1272/Mas o objetivo deste post e o mais interessante é a existência, ainda hoje, do certificado de ajuste e precisão. Afinal, a precisão do relógio determinava se o navio estaria no lugar certo ou naufragado após bater numa rocha...
O certificado foi emitido por uma tal "Guilherme Lopes Custódio, Reparação e Regulação de Chronometros de Marinha". Confesso que não pesquisei a fundo sobre esta empresa, mas ao que parece, não era brasileira, mas portuguesa. Se alguém tiver mais informações, agradeço...
E olhem as informações bacanas no certificado, totalmente escrito à mão. Há o ano e mês no qual foi reparado e o ano e mês no qual foi ajustado... E lembrem-se que na época não havia timers eletrônicos, ou seja, o ajuste de um relógio era tarefa demorada, pois tinha que ser feito de 24 em 24 horas, através da comparação com um relógio "mestre". Mas não só: em temperatura controlada. É o que também se pode verificar no certificado (ajustado a 28,5 graus). E finalmente encerra com o dado mais importante: ATRASA todos os dias 0.5 segundos. Ou seja, num cronômetro de marinha, os relógios mecânicos portáteis mais precisos já criados, assim como em todos os relógios, o que importa é a REGULARIDADE de marcha! Afinal, se o relógio atrasa ou adianta a mesma coisa todos os dias, basta colocar tal variação no cálculo de navegação, simples aritmética, que se encontra o valor "real" de variação do tempo. Não que 0.5 segundos ao dia sejam ruim, pelo contrário, não é: nem em sonho um relógio de pulso ATUAL consegue facilmente fazer isso. Mas faria pouca diferença se a variação indicada no certificado fosse de 1, 2 segundos... O que importa é que essa variação seja CERTA todos os dias.
E o certificado encerra, finalmente, com uma ORDEM: corda todos os dias! E numa hora exata (por questões de isocronismo): 9 da manhã!
Muito legal.
Flávio